Segundo a Gestalt e outras linhas de compreensão do pensamento humano, o ser humano tem a necessidade de encontrar padrões. Isso faz parte da nossa psicologia evolutiva. Perguntas em aberto, situações incompletas e informações pela metade nos causam insegurança. Como um mecanismo de proteção, o cérebro tenta preencher aquilo que falta. É o que aparece em situações cotidianas, como o meme de que “fofoca contada pela metade quase mata o fofoqueiro do coração”, ou quando sabemos apenas um pedaço de uma história e acabamos fantasiando o resto.

Esse processo se manifesta também nos relacionamentos. A falta de informação completa pode gerar ciúmes, mal-entendidos e conflitos, porque aquilo que não sabemos é preenchido pela nossa imaginação, muitas vezes carregada de fantasias, medos e angústias.

Alguns jogos e brincadeiras que fazemos desde a infância já despertam essa sensação de incompletude e essa necessidade que temos de completar as coisas. Desenhos do tipo “ligue os pontos”, “quebra-cabeças”, o “jogo da forca”, o “jogo de detetive”, o “telefone sem fio”, todos trabalham com pistas parciais que estimulam o cérebro a preencher o que falta. E existem outras brincadeiras que funcionam da mesma forma, como “adivinhação”, “mímica”, “charadas”, “quem sou eu?” e “frio ou quente”, onde a graça está justamente em completar aquilo que não foi dito. Nessas brincadeiras, o jogo vai se construindo de maneira criativa a partir das pistas, das fantasias e dessa necessidade tão humana de completar o que está em aberto.

A quem pertence a música, a que a compõem, a interpreta ou quem a ouve?

Na arte, esses espaços vazios são fundamentais. Como temos a tendência natural de completar o que está em aberto, quando o artista deixa lacunas na composição, na obra ou na interpretação, cada pessoa preenche esses espaços de acordo com seus próprios sentimentos. Por isso, ao ouvir uma música, a obra passa a ser também de quem a ouve, porque ela colore as partes não ditas com aquilo que faz sentido para ela.

Nesse sentido, notas que não são tocadas, pausas e silêncios são tão importantes quanto as notas emitidas. Letras não lineares, estruturadas como poesia, que saltam de um assunto para outro, que misturam imagens e referências às vezes desconhecidas, também ganham força. Essa falta de linearidade e essa subjetividade permitem que cada pessoa complete o que está em aberto com a sua própria subjetividade.

Entender é sentir?

Ao mesmo tempo, quando escrevemos um texto como esse, buscamos um entendimento racional da composição. Procuramos lógica, buscamos teorias que expliquem esses processos. Mas, no momento da arte, seja criando, executando ou interpretando música, não é esse pensamento racional que importa. O que interessa é a fantasia, o subjetivo, o sensível, os múltiplos sentidos simultaneamente, dor e prazer, quente e frio.

Por que, então, pensar racionalmente sobre isso também é útil? Porque, no caso da música que estudamos, o Blues, as pessoas faziam exatamente o que estamos descrevendo, mas sem teoria. Elas criavam Blues porque aquilo era a vida delas, a cultura delas, algo transmitido de pessoa para pessoa. Era assimilado de forma orgânica, artística, subjetiva, poética, naturalmente.

Quando teorizamos sobre isso, seja como estudantes ou professores, fazemos isso para conseguir transmitir essa forma de pensar e, principalmente, essa forma de sentir a música. Para ajudar alguém a encontrar esse lugar de emoção e desligar um pouco a racionalidade, evitando cair em pensamentos lógicos demais, que geram músicas previsíveis, didáticas, sem poesia, sem espaço para criação, fantasia ou sentimento. Tudo o que racionalizamos em excesso acaba perdendo o sentimento.

Isso não significa, na música, que razão e sentimento sejam opostos, sem a razão e alguma ordem estética a música se tornaria em um amontado de sons aleatórios, a "não-música". São apenas lugares diferentes, momentos diferentes. A razão é importante para compreendermos o que está acontecendo. Mas a arte não é sobre compreender: a arte é sobre sentir.

Blues é sobre contornos leves, cores, sugestões, provocações

Nesse sentido, o Blues é um gênero que tem uma característica muito importante: as notas que são tocadas e cantadas não são apenas notas ordenadas, perfeitamente executadas num prévio planejamento. A improvisação, o clima do momento, o atraso ou antecipação de uma frase musical a nota mais longa ou mais curta que o esperado, a nota que termina no suspense deixando uma pergunta sem resposta. A articulação, o jeito de cantar, a forma melódica, tudo aquilo que envolve a entrega e a interpretação dessas notas se torna ainda mais importante, porque transmite uma subjetividade muito forte.

Você sente o que o outro sente sem viver o que o outro viveu?

Por exemplo, uma música que fala de traição, abandono, falta, raiva ou qualquer outro sentimento. A letra está dizendo uma coisa, mas muitas vezes não nos identificamos com ela se pensarmos de forma literal. Mesmo assim, pela forma como a música é entregue, conseguimos nos conectar com o Blues. Mesmo quem não fala inglês ou não entende o que a letra está dizendo, ainda assim percebe o sentimento que está ali, porque ele está na forma como as notas são tocadas, como são entoadas as palavras, na entonação, no peso emocional que vem junto da melodia.

Assim, mesmo sem entender a letra ou a história literal daquela letra, conseguimos compreender o sentimento por trás. Uma música que fala sobre traição entre um casal pode ser percebida, de forma subjetiva e quase inconsciente, como qualquer outro tipo de traição: no trabalho, com um colega, em uma relação profissional, com um vizinho, com um amigo, ou até como um sentimento de indignação diante da sociedade. E isso se amplia para muitos outros exemplos.

Na época da segregação racial, por exemplo, muitos Blues traziam letras que falavam de uma mulher, de um relacionamento entre marido e mulher, mas na verdade o músico estava falando do dono da fazenda, do capataz, de alguém sobre quem ele não podia falar de forma aberta. A letra dizia uma coisa, mas o sentimento por trás dizia outra.

A música, então, se completa dentro da mente, dentro da psique de quem está ouvindo. Cada pessoa acaba se apropriando da música de um jeito próprio, independente de entender a língua, de compreender a história literal ou de conhecer o contexto. O que ela entende, e o que realmente importa nesse tipo de música, é o sentimento que está por trás.

A dor é da mula?

Numa entrevista, o baixista, compositor e produtor Willie Dixon dá um exemplo de um tipo de Blues cantado nas fazendas, onde os negros, na época da segregação, trabalhavam em condições análogas à escravidão. Ele canta um trecho em forma de lamento, algo muito simples, como ele dizia ouvir dos trabalhadores no campo. Dixon descreve a cena: o homem arando a terra, a mula puxando o arado, e o trabalhador caminhando atrás, sentindo dó da mula, que carregava todo aquele peso no ombro. E explica que o Blues é também isso, sentir a dor do outro. Porque, ao mesmo tempo em que aquele homem tinha compaixão pela mula cansada, ele também carregava a própria dor de fazer um trabalho tão pesado. Aquele trabalhador estava cantando sobre a dor da mula? sobre a própria dor? sobre as dores do mundo?

O Blues (como toda música de raiz) é um gênero atemporal, ainda que traga seu contexto histórico em existência, que cativa e é acessível a qualquer pessoa, de qualquer lugar do mundo, justamente por trazer esses sentimentos subjetivos que o próprio ouvinte acaba preenchendo.

Porque voz, guitarra e gaita se destacam no blues?

No Blues, os principais instrumentos solistas, pelo menos os mais famosos, são a guitarra e a gaita. Podemos pensar no piano também como solista, mas ele geralmente trabalha mais a harmonia e ritmo, com contra-melodias, enquanto o destaque costuma ir para a guitarra e a gaita. Acredito que esses dois instrumentos chamam tanta atenção no Blues porque eles permitem tocar notas não temperadas, proporcionando a execução de ornamentos musicais como vibrato e bends, que soam parecidos com os lamentos, humor, ironia, alegria e demais inflexões que conseguimos produzir com a voz, que é nosso instrumento mais completo, nossa referência para todos os demais instrumentos. Aqui, inflexões no sentido de entonações, nuances e modulações microtonais, reforçando essas pequenas variações expressivas que dão significados subjetivos ao som.

Nesses instrumentos, é possível produzir vibratos e bends, tecnicamente chamados de glissandos, que consistem em esticar uma nota até chegar a outra. Nesse percurso entre uma nota e outra, existem vários pontos intermediários, microtons, que ficam entre os semitons. No piano, o caminho é fixo: de meio tom em meio tom, sem possibilidade de intervalos menores. Já na guitarra e na gaita é possível fazer o bend, esse glissando que vai escalando entre os meios-tons, com nuances e microtons que não existem nos instrumentos temperados.

Isso se aproxima muito do som da voz humana, da forma como emitimos as palavras. A nossa fala é, de certa forma, cantada. Existem microtons o tempo todo, e é por essas variações que percebemos a entonação de alguém: se está bravo, nervoso, feliz, alegre, triste ou deprimido. Os sons dão o verdadeiro significado das palavras. As palavras são códigos que decodificamos racionalmente, mas o que realmente está sendo dito está nos sons, nas variações entre uma sílaba e outra, entre uma vogal e outra.

É assim que reconhecemos o choro de um bebê, qualquer pessoa sabe que aquele som expressa necessidade, e é assim que percebemos quando uma mãe fala carinhosamente com o bebê, ou quando um pai, uma mãe ou um responsável usa um tom mais grave para educar uma criança. Esses sons, que aprendemos ainda pequenos, carregamos para a vida inteira, e percebemos essas sutilezas o tempo todo.

Por isso o livro é uma linguagem tão particular. A linguagem escrita não entrega entonação. Na escrita, conseguimos dar ritmo ao texto, mas não entonação. Essa entonação passa a ser criada por quem lê, e isso abre um campo de fantasia que torna a experiência única para cada pessoa. Cada leitura é diferente, porque cada vez o leitor completa esses espaços com a entonação que sua imaginação e seus sentimentos produzem naquele momento.

Na música, o intérprete consegue entregar essa entonação. Ele provoca, fornece um estímulo para que quem ouve interprete aquilo e traga o conteúdo para o próprio sentimento.

Na música, embora o intérprete dê a entonação, ele oferece apenas uma pista, um clima para aquilo que está sendo dito. O ouvinte vai interpretar e reinterpretar tudo à sua maneira, de acordo com o que sente naquele momento. Mas, quando o intérprete coloca microtons, articulações e certas inflexões nas frases musicais, é como se dissesse: “o que estou falando não é exatamente o que a letra diz”, ou “será mesmo isso que estou dizendo?”, ou ainda “é assim que eu me sinto em relação a isso que canto”. Esses gestos musicais abrem camadas de interpretação.

Essa combinação de sons, pausas, entonações e nuances desenha paisagens sonoras na mente de quem ouve. O ouvinte se coloca dentro dessa paisagem e se torna um personagem da cena criada pela música, dialogando com aquilo que acontece ali, mesmo que silenciosamente. Esse é o poder da música: a vibração do ar que o ouvido capta, transforma em pulsos elétricos, e que, no cérebro, se converte em imagens, sensações e cenas internas.

É isso que faz da música uma linguagem universal. Falamos aqui do Blues, mas esse fenômeno vale para qualquer tradição musical, especialmente para expressões populares, onde emoção, história e cultura caminham juntas. No nosso caso ocidental, entendemos melhor aquilo que faz parte da nossa própria vivência cultural, porque as emoções também têm uma dimensão cultural: a forma como as percebemos, nomeamos e sentimos.

Mas quando ouvimos uma música de uma cultura distante da nossa, mesmo que não compreendamos totalmente o significado original, ela nos leva a outro tipo de encontro. É um lugar onde as culturas se tocam, se atravessam e revelam algo mais profundo: que, por trás das diferenças, existe uma experiência humana comum. E, no fundo, é essa experiência, compartilhada, subjetiva, emocional, que permite que a música viaje por qualquer tempo, lugar ou povo, e ainda assim encontre sentido em quem a ouve.  Quais são as suas dores? Qual é o arado pesado que você carrega?