O Blues é um gênero musical e, por ser um gênero, ele segue algumas regras, alguns padrões que o tornam característico. A gente vai falar aqui do Blues de 12 compassos, no padrão mais comum, mais usado, que ficou consolidado como o mais tradicional. Esse padrão foi criado ao longo do tempo, no começo do século XX, a partir do momento em que as pessoas que cantavam Blues já tinham acesso ao violão, porque, quando vieram da África escravizadas, os negros não puderam trazer nenhum instrumento e nem era permitido tocar nenhum instrumento durante toda a época da escravidão. Então, o máximo que eles podiam fazer era cantar enquanto trabalhavam.
Como eles viviam separados dos brancos, não havia troca de cultura entre eles. E também não tinham mais acesso à cultura original deles, com o povo deles, só com aqueles que foram levados. Então, o pai ia passando para o filho, o filho para o neto e assim sucessivamente, por geração em geração. As melodias que vinham da África, que não seguem a escala que a gente conhece como ocidental — que aqui depois tentaram nomear e categorizar dentro do nosso sistema ocidental como a escala pentatônica ou pentablues —, na verdade são um modo diferente de pensar a música, inclusive usando muitos microtons, microafinação, ou seja, uma escala não temperada, que é a escala mais parecida com a voz humana.
Eles cantavam essas melodias enquanto trabalhavam, e aí foram aprendendo inglês, aprendendo a língua materna deles misturada com o inglês. Esses pequenos trechos melódicos eram quase lamentos, mas já com uma melodia em inglês. E a única troca de cultura que tiveram, que foi permitida a eles, foi a evangelização. Eles foram evangelizados no cristianismo. Então surgem os chamados “spirituals”: esses lamentos começam a ser feitos em forma de louvor ou súplica a Deus, mas ainda mantendo a melodia original africana.
Aí começa a acontecer uma mistura de cultura. No século XX, quando acaba a escravidão, mas permanece no sul dos Estados Unidos o sistema de segregação racial, através das leis Jim Crow, aquilo que era somente um lamento no campo começa a se transformar numa música mais estruturada.
Para a gente entender a estrutura, a gente precisa entender alguns termos musicais. Um deles é o chamado Chorus. Falando em termos de música, Chorus é o conjunto, um número predeterminado de compassos, de acordo com a música, onde é apresentado o tema. No Jazz, por exemplo, é apresentado o tema, que geralmente é cantado. Depois que se canta o tema, abre-se para improvisação e, depois disso, volta-se para o tema. Cada vez que se faz o tema inteiro, seja cantado ou improvisado, é chamado de Chorus.
No caso do Blues, ele segue uma estrutura fixa. No Blues desse formato que a gente está falando, o mais tradicional, o de 12 compassos, ele segue uma estrutura fixa de 12 compassos. Nesses 12 compassos existe uma harmonia que pode ter pequenas variações, mas aqui vamos falar da principal, da mais usada.
Essa harmonia funciona assim: eu costumo pegar um papel e colocar os 12 compassos divididos em 3 linhas, cada linha com 4 compassos. Na primeira linha, nos primeiros 4 compassos, a gente toca o primeiro grau. Os acordes são sempre com sétima. O primeiro grau dura 4 compassos.
Na segunda linha, onde começa o quinto compasso, o quinto e o sexto compasso vão para o quarto grau, também com sétima. No compasso 7 e 8, volta para o primeiro grau.
Na linha de baixo, na última linha, é o momento de mais tensão da música, onde ele vai para o quinto grau e, no compasso seguinte, para o quarto grau. Para finalizar, nos dois últimos compassos ocorre o turnaround: um compasso no primeiro grau e o último compasso no quinto grau.
Turnaround e a estrutura dos versos
Estes dois últimos compassos da última linha, os compassos 11 e 12, onde ocorre o turnaround, são fundamentais, porque o turnaround significa justamente uma frase que vai ligar a música de novo e voltar para o primeiro grau, começando um novo chorus, que seria um novo ciclo. Ele é sempre instrumental e é uma frase de ligação. Geralmente se usam alguns clichês para fazer essa ligação, porque ele serve apenas para formar um loop. O Blues ocorre em uma forma de loop.
É muito importante destacar que o Blues não nasce primeiro da harmonia. Como dito acima, ele nasce do canto, da forma de cantar, da melodia, e depois se coloca uma harmonia que vai colorir essa melodia. Essa melodia é sempre cantada, sempre com letra, em forma de poesia. E o modelo que foi se desenvolvendo e ficou consolidado, mais conhecido e mais usado, é um formato de poesia que a gente poderia dividir em dois grupos, o grupo A e o grupo B. (Embora existam também notações que dividem em três grupos: A, B e C. Mas aqui estamos falando de duas partes: A e B.)
O grupo A dá o mote do que vai falar aquele primeiro coro, aqueles doze compassos. É o que vai ser tratado naqueles doze compassos. É uma frase que junta letra e melodia, formando a frase A, uma frase musical. Ela é cantada na primeira linha dos doze compassos, nos dois primeiros compassos. Depois de cantar essa frase, ficam dois compassos instrumentais, onde ocorre a resposta da guitarra, da gaita, do piano: uma resposta instrumental.
Quando vai para a segunda linha, que cai no quarto grau na harmonia, repete-se a frase musical A. É a mesma frase, só que agora aplicada sobre outra harmonia. Às vezes tem pequenas variações melódicas, principalmente no começo da frase, para dar outra entonação, mas é a mesma frase. Ela ocorre nos compassos 5 e 6, que são os que ficam em cima do quarto grau. Nos compassos 7 e 8, volta-se para o primeiro grau, e ocorre novamente a resposta instrumental.
Já o verso B é o desfecho. Se o verso A é o mote, o tema, a provocação do que está sendo colocado naquele coro, o B é o desfecho da história, o fechamento do clima que está sendo contado ali. O verso B ocorre na última linha. Geralmente ele é dividido em duas frases: começa no quinto grau e depois vai para o quarto grau. Os dois últimos compassos, que sobram, são instrumentais, justamente onde ocorre o turnaround.
Então, a gente pode pensar que é sempre assim: dois compassos cantados e dois compassos de resposta instrumental; dois cantados e dois de resposta; e na última linha, dois cantados e os dois últimos do turnaround para recomeçar a música.
Exemplos da estrutura A / A / B em Blues tradicionais
1. Sweet Home Chicago — Robert Johnson
A: Come on, baby, don't you wanna go
A: Come on, baby, don't you wann go
B: Back to the land of California | To my sweet home Chicago
2. Dust My Broom — Elmore James
A: I believe, I believe my time ain't long
A: I believe, I believe my time ain't long
B: I ain't gonna leave my baby | And break up my happy home
3. Every Day I Have the Blues — Elmore James
A: Every day, every day I have the blues
A: Every day, every day I have the blues
B: Speaking of bad luck and trouble, now, | it's you I hate to lose
4. The Sky Is Crying — Elmore James / Stevie Ray Vaughan
A: The sky is crying, look at the tears roll down the street
A: The sky is crying, look at the tears roll down the street
B: I'm waiting in tears looking for my baby, | and I wonder where can she be?
5. Let Me Love You Baby — Willie Dixon / Buddy Guy / SRV
A: Well now, oh wee baby, you know I declare, you sure look fine
A: I said, ooh whee baby, you know I declare, you sure look fine
B: Well there's a girl like you a make many a man change his mind
Exemplo da estrutura melódica ABC (variação dos 12 compassos)
No segundo formato de estrutura melódica, os 12 compassos permanecem iguais, mas a distribuição dos versos muda. O verso A é mais longo, tem mais letra, e ocupa os primeiros quatro compassos inteiros. Quando a harmonia vai para o quarto grau, entra o verso B, que é curto e funciona de forma parecida com o modelo AAB anterior. Na última linha entra o verso C, que é o desfecho, seguido imediatamente pelo turnaround, que retorna ao início do ciclo.
Usando como exemplo outro trecho de Sweet Home Chicago...
A
Crying baby
Honey, don't you want to go?
Back to the land of CaliforniaTo my sweet home Chicago
Paradinhas (stop-time, stops, breaks)
Tem muitos Blues que começam com a voz falada, e no momento em que fica só a voz isolada a banda para, fazendo apenas um ataque no fim das frases. Ou a banda faz uma frase instrumental, depois entra a voz, aí para, faz outro ataque e assim por diante. São as paradinhas (stop-time), e elas ocorrem, quando acontecem, sempre na primeira linha, em cima do primeiro grau.
Quando existem essas paradinhas, aqueles quatro primeiros compassos ficam com esse formato de voz isolada + ataques. Quando a banda entra para valer, ela entra já na parte B, na segunda linha, a partir do quinto compasso, e segue até o turnaround. Algumas músicas mantêm essa paradinha toda vez que o coro volta ao começo. Outras fazem apenas esse primeiro coro com paradinha e depois seguem normalmente.
Um exemplo que volta sempre na paradinha é “You’ve Got to Love Her With a Feeling”, do Freddie King. Essa música ocorre exatamente dentro dos doze compassos e, sempre que começa de novo, segue a estrutura A, B, C. E sempre que está em cima do A, nos quatro primeiros compassos, ela faz a paradinha. A estrutura fica assim:
A (com paradinha)
A mais conhecida de todas que usa paradinhas é “Hoochie Coochie Man”, do Muddy Waters. Nessa música ele faz uma outra variação. Em vez de seguir os doze compassos inteiros, na parte das paradinhas o Blues vira um Blues de mais compassos — provavelmente dezesseis — porque ele fica mais tempo no primeiro grau, falando a letra de forma quase falada, enquanto a banda acompanha fazendo o riff instrumental.
Quando a banda finalmente entra por completo, ela entra direto no quarto grau. E quando vai para a improvisação, quase sempre na parte instrumental não tem paradinhas: volta-se ao formato tradicional de doze compassos.
Estrutura dessa abertura com paradinhas (somente o começo para você completar):
A (expandido, com paradinhas): The gypsy woman told me…
(ataque da banda)
A (repetição, ainda no primeiro grau): She said you’re gonna be the…
(ataque da banda)
A (continuação, ainda em stop-time): You’re gonna be the hoochie coochie…
(ataque da banda)
Entrada da banda no quarto grau (fim do stop-time): Everybody knows I'm…
(segue harmonia normal)
Desfecho + turnaround: Lord, I'm your…
A harmonia é o que vai dar contraste a essa melodia. Se a gente pensar em termos visuais, é como se a gente estivesse tirando foto de uma pessoa, com essa pessoa no primeiro plano — essa pessoa seria a melodia. E eu fazendo uma determinada ação, pode ser um movimento, dançando, jogando bola, observando, reflexivo, posando para a foto, não interessa. A harmonia seria a paisagem no fundo. A gente percebe claramente que, se você coloca uma pessoa em primeiro plano com uma bola, fazendo embaixadinha, e o plano de fundo é uma avenida movimentada, tem alguma coisa estranha acontecendo, porque é uma avenida movimentada num lugar em que não se joga bola. Isso não quer dizer que está errado, quer dizer que a mensagem que está sendo passada tem duas mensagens embutidas em uma só, que vai gerar uma terceira interpretação.
Mas, no caso do Blues, isso é só um exemplo para entender o papel da melodia e da harmonia, uma metáfora. Na verdade, a melhor metáfora não existe para isso. Ouvindo, a gente consegue perceber; a gente precisa treinar um pouco o ouvido para ir percebendo esse tipo de coisa. A harmonia do Blues — o que a gente busca em termos harmônicos — é sempre um repouso. Todas as músicas, geralmente no formato mais convencional, começam no repouso, criam um movimento, uma tensão, para depois retornarem ao repouso quando recomeçam.
No caso do Blues, por os acordes serem sempre com sétimas, eles assumem uma função chamada acorde dominante. Todos eles têm essa função dominante, então não existe repouso: ele nunca dá completamente a sensação de repouso. O que podemos dizer é que, no lugar do repouso, existe menos tensão. Ele varia entre menos tensão e mais tensão.
Então, ele passa pelo primeiro, quarto e quinto graus — não necessariamente nessa ordem. Esses são os acordes por onde vai passar a harmonia do Blues; são as paisagens por onde vai passar a melodia do Blues. Ele começa no primeiro grau, que seria o lugar de menos tensão, onde se faz o verso A. Pensando no modelo A, A, B: no primeiro grau ele faz o A, nos primeiros quatro compassos. Quando entra o A de novo, ele está no quarto grau, repetindo a mesma melodia que fez antes, mas agora com uma paisagem um pouco diferente, mais tensa.
Depois ele retorna ao primeiro grau, onde entra a parte instrumental, a resposta solista, até caminhar para o desfecho, que seria o verso B. Aí ele começa no quinto grau, que dentro desse modelo de acordes é o momento mais tenso da música. O quinto grau é onde acontece o desfecho, o ápice do coro, do tema. Depois ele alivia um pouco voltando ao quarto grau e, em seguida, vão ocorrer os dois últimos compassos: primeiro grau e depois quinto grau, onde aparece o turnaround, que é novamente o ponto de maior tensão.
Sempre que passa pelo quinto grau, é o momento de maior tensão da música, e é ele que faz a ligação para recomeçar o loop. E a música funciona nesse loop, nesses ciclos.